segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Maio 1959 

Carta a Mondrian 

"Hoje eu me sinto mais solitária que ontem. Senti uma enorme necessidade de olhar o teu trabalho, velho também solitário. Dei com você numa foto fabulosa e senti como se você estivesse comigo e com isso já não me senti tão só. Talvez amanhã possa dar também de meus olhos, de minha solidão e de minha teimosia a alguém que será um artista como eu ou talvez mais ainda, como você. Não sei para que você trabalhava. Se eu trabalho, Mondrian, é para antes de mais nada me realizar no mais alto sentido ético-religioso. Não é para fazer uma superfície e outra... Se exponho é para transmitir a outra pessoa este "momento" parado na dinâmica cosmológica, que o artista capta. Você que era um místico deve quantas e quantas vezes ter vivido
"momentos" como esse dentro da vida, ou não? 
Dizem que você detestava a natureza - é verdade? Pois eu senti hoje essa transcendência através da natureza, na noite, no amor - como você poderia ter raiva da natureza? Você não acha que a obra de arte é o produto de duas polaridades, que é a dinâmica da vida humana? Você estava preso à terra tão profundamente e o vôo no sentido da verticalidade era sua medida? 
Pois a natureza me alimentou, me equilibrou quase que de uma forma panteística. Mas com o tempo, numa outra crise, já isto não adiantou e foi o "vazio pleno", a noite, o silêncio dela que se tornou a minha moradia. Através deste "vazio pleno" me veio a consciência da realidade metafísica, o problema existencial, a forma, o conteúdo (espaço pleno que só tem realidade em função direta da existência dessa forma...). 
Mondrian: você acreditou no homem. Você fez mais: num sonho utópico, estupendo, pensou em eras vindas em que a própria vida "construída" seria uma realidade plástica... 
Talvez isto te salvasse da tua própria solidão. Pois eu, meu amigo, não sonho porque não acredito. Não por excesso de realismo mas para mim o coletivo só existe na razão desta desordem de ordem prática e social. Se o homem não pode sentir como é importante esse desenvolvimento interior - chamemos de uma forma que nasce com a pessoa como um punho fechado, talvez se abrindo no primeiro tempo com o próprio nascimento - então ele jamais poderá atingir sua plenitude como a rosa que se abre dentro do seu próprio tempo e morre amorosamente realizada, inteligente e feliz... 
Mondrian, um segredo eu vou contar: às vezes, eu me sinto tão desesperada, porque no momento em que "checo" este problema a solidão, o frio, "o medo do medo" me envolvem com todos os seus braços e procuram fechar este novo tempo que desabrocha na minha forma interior, amassando pétalas frescas e delicadas que levarão novo tempo para se abrirem como se abre um olho devagar, depois de ter levado um bom murro. 
Mondrian, se sua força pode me servir, seria como o bife cru colocado neste olho sofrido para que ele veja o mais depressa possível e possa encarar esta realidade às vezes tão insuportável - "o artista é um solitário". Não importam filhos, amor, pois dentro dele ele vive só. Ele nasce dentro dele, parto difícil a cada minuto, só irremediavelmente só. Você seria talvez a chuva que molha a flor que nasceu na areia ou no asfalto, se você prefere, pois é cidade e não natureza. 
Você hoje está mais vivo para mim que todas as pessoas que me compreendem, até um certo ponto. Sabe por quê? Veja só se tenho razão ou não. Você já sabe do grupo neoconcreto, você já sabe que eu continuo o seu problema, que é penoso (você era homem, Mondrian, lembra-se?). No momento em que o grupo foi formado havia uma identificação profunda, a meu ver. Era a tomada de consciência de um tempo-espaço, realidade nova, universal como expressão, pois abrangia poesia, escultura, teatro, gravura e pintura. Até prosa, Mondrian... Hoje a maioria dos elementos do grupo se esquecem desta afinidade (o mais importante) e querem imprimir um sentido menor a ele, quando preferem que ele cresça sem esta identidade para mim imprescindível, numa tentativa de dar continuidade superficial a este movimento. Você bem sabe que, no cubismo, as formas foram várias mas, no sentido mais profundo que era esta nova realidade espacial, foram respeitadas. Só o tempo a meu ver traria continuidade real a este movimento. 
Agora, velho, simpático mestre, diga-me com toda franqueza: meu desejo é deixar o grupo e continuar fiel a esta minha convicção, respeitando a mim mesma, embora mais só que ontem e hoje, eu serei amanhã, pois as pessoas que se aproximaram um dia, há bem pouco tempo, se afastam desorientadas sem enfrentarem a dureza de estar só num só pensamento, sem resguardar o sentido maior, ético, de morrer amanhã, sozinha mas fiel a uma ideia. Diga, meu amigo: é duro, é terrível porque é deixar de ter, mesmo sem me afastar realmente do grupo, pois já se fragmentou a unidade, a verdade dura e terrível feita a sete para se multiplicar em realidades pequenas - reconfortantes por certo, às centenas. 
Hoje eu choro - o choro me cobre, me segue, me conforta e acalenta, de um certo modo, esta superfície dura, inflexível e fria da fidelidade a uma ideia. 
Mondrian: hoje eu gosto de você."

Lygia Clark.

"(...) os descompassos entre arte e vida"



"O que me preocupa é captar a passagem da vivência imediata, com toda a sua força empírica, para o símbolo, com sua memorabilidade e relativa eternidade. Sei que se trata, no fundo, do seguinte problema: a vida imediata, aquela que sofro, e dentro da qual ajo, é minha, incomunicável, e portanto sem sentido e finalidade. O reino dos símbolos, que procuram captar essa vida (e que é o reino das linguagens), é, pelo contrário, antivida, no sentido de ser intersubjetivo, comum, esvaziado de emoções e sentimentos. Se eu pudesse fazer coincidir esses dois reinos, teria articulado a riqueza da vivência na relativa imortalidade do símbolo." 

Mira Schendel.

"Rika, in spite of everything, the days flowed by and got faded, like the colors of this postcard... Everytime we think about being happy again, it hurts to be alive. Because it seems an inordinate thing for us to wish for. And because we think that day never come for us. And that's why the only thing we can do for now is just try to get through each night. Just as this girl has helped me come this far, I pray that the young man who's by you now will carry you over to tomorrow."

Shuu-chan. ♥


"Museu é o mundo"




"Hélio falava sobre o "Delirium Ambulatório", uma espécie de movimento criativo que ele desenvolvia em suas caminhadas pela cidade, principalmente pelo centro do Rio de Janeiro, passando pelo Mangue, entre a Central do Brasil e o Morro da Mangueira, que o levava aos mais variados vislumbres sobre formas de novas obras. Nessas caminhadas criativas, ele sempre levava um bloco de fichas, que chamava Index Cards, onde anotava os detalhes para seus projetos. Como um explorador em um grande labirinto, Hélio se deslocava no espaço urbano, fosse de ônibus ou a pé, reconstruindo o mundo como um grande quebra-cabeça, a ser esmiuçado e reinventado, como em seus Núcleos, em que retira a pintura da prisão bidimensional e a joga no espaço, como quem quer revelar a sua essência, enquanto cor, tempo, estrutura e obra diretamente conectada à vida.
Quando criança, Hélio decorou todo o Guia Rex da cidade do Rio de Janeiro. Ele conhecia as diversas linhas de ônibus, inclusive todos os seus pontos. Daí, inventou uma brincadeira chamada "motorista de ônibus", que parava em todos os pontos, segundo suas sequências em cada linha. Mais tarde, ele imaginou uma cidade, a qual chamou de Segunda Parte de Belo Horizonte, e fez dela uma imensa planta. Essas histórias, mais que meras curiosidades, nos levam a entender sua forma de pensar, desde criança até seus últimos trabalhos.
Assumindo sempre uma posição de observador, ele se debruça com intensidade sobre determinado mundo e o disseca, de tal maneira que pode dominá-lo totalmente, a ponto de desmontá-lo, dando a ele uma nova feição. Sua visão anárquica não se contenta com fórmulas prontas. Na verdade, a desmontagem de alguns preceitos, tidos como rígidos e institucionalizados, nos revela sempre um novo mundo, uma nova possibilidade.
Em sua práxis, Hélio trabalhou como um inventor que constrói suas obras a partir de descobertas, geradas em sua vivência diária, seja no Morro da Mangueira ou no contato com a obra de grandes mestres, como  Klee ou Mondrian, e reveladas em profundas pesquisas plásticas, sensoriais e culturais. Então, inicia um processo de mitificação, seguido pelo de "desmitificação", quando se apropria de certas formas que, muitas vezes, reconstrói adiante em arte. "Desmitificação", aliás, foi um conceito caro para Hélio nos seus últimos anos, como podemos ver em suas últimas entrevistas, onde ele ressalta o seu processo de desmistificação como uma maneira de desconstruir mitos."

César Oiticica Filho.

sábado, 23 de fevereiro de 2013



"Era preciso avisar as pessoas dessas coisas. Informar que a imortalidade é mortal, que pode morrer, que aconteceu e ainda acontece. Que ela não se mostra enquanto tal, nunca, que ela é duplicidade absoluta. Que ela não existe no detalhe, mas apenas como princípio. Que algumas pessoas podem acolher essa presença da imortalidade, desde que não se deem conta disso. Assim como algumas outras pessoas podem perceber essa presença nos demais, com a mesma condição, desde que não se deem conta disso. Que a vida é imortal enquanto vive, enquanto está em vida. Que a imortalidade não é uma questão de mais ou menos tempo, não é uma questão de imortalidade, é uma questão de uma outra coisa que continua desconhecida. Que é tão falso dizer que ela não tem começo nem fim quanto dizer que ela começa e acaba com a vida do espírito, pois é do espírito que ela participa e busca do vento. Olhem as areias mortas dos desertos, o corpo morto das crianças: a imortalidade não passa por ali, ela para e contorna."

Marguerite Duras.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

“Não se deve enganar em sua solidão, por existir algo em si que deseja sair dela. Justamente tal desejo, se dele se servir tranquila e sossegadamente como de um instrumento, há de ajudá-lo a estender a sua solidão sobre um vasto território. Os homens, com o auxílio das convenções, resolveram tudo facilmente e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que nós devemos agarrar-mos ao difícil. Tudo o que é vivo se agarra a ele, tudo na natureza cresce e se defende segunda a sua maneira de ser; e faz-se coisa própria nascida de si mesma e procura sê-lo a qualquer preço e contra qualquer resistência. Sabemos pouca coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita.

Amar também é bom: porque o amor é difícil. O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação. Por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo, não sabem amar: tem que aprendê-lo.

Com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas em seu coração solitário, medroso e palpitante, devem aprender a amar. Mas a aprendizagem é sempre uma longa clausura. Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora é solidão, isolamento cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. Que sentido teria, com efeito, a união com algo não esclarecido, inacabado, dependente? O Amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer tornar-se algo em si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser; é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe. Do Amor que lhes é dado, os jovens deveriam servir-se unicamente como de um convite a trabalhar em si mesmos. A fusão com o outro, a entrega de si, toda a espécie de comunhão não são para eles, são algo de acabado para o qual, talvez, mal chegue atualmente a vida humana.

Aí está o erro tão grave e frequente dos jovens – cuja natureza comporta o serem impacientes – atiram-se uns aos outros quando o amor desce sobre ele e derramam-se tais como são com seu desgoverno, sua desordem, sua confusão. Que acontecerá pois? Que poderá fazer a vida desse montão de material estragado a que eles chamam de comunhão e facilmente chamariam de felicidade? Que futuro os espera? Cada um se perde por causa do outro e perde ao outro e a muitos outros que ainda queriam vir.

 [...]

Na medida, porém, em que começarmos a tentar, solitários, a vida, estas grandes coisas se hão de aproximar da nossa solidão. As exigências feitas à nossa evolução pela tarefa difícil do amor são sobre-humanas e, quando estreantes, não podemos estar à sua altura. Mas se perseverarmos, apesar de tudo, e aceitarmos esse amor como uma carga e uma tirocínio em vez de nos perdermos na fácil e leviana brincadeira que serve aos homens para se subtraírem ao problema mais grave de sua existência – então, talvez, um leve progresso e alguma facilidade venham a ser experimentados por aqueles que chegarem muito tempo depois de nós – e isto já será muito.

 [...]

Esse progresso há de ser transformar radicalmente (muito contra a vontade dos homens a quem tomará a dianteira) a vida amorosa hoje tão cheia de erros numa relação de ser humano para ser humano, não de macho para fêmea. E esse amor mais humano (que se produzirá de maneira infinitamente atenciosa e discreta, num atar e desatar claro e correto) assemelha-se-á àquele que nós preparamos lutando fatigosamente, um amor que consiste na mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões.

Ainda mais: não pense que o grande amor que fora imposto na sua adolescência se tenha perdido. Não terá sido então que amadureceram em si grandes e bons desejos e propósitos dos quais o senhor vive ainda hoje? Creio que aquele amor persiste forte e poderoso em sua memória justamente por ter sido sua primeira solidão profunda e o primeiro trabalho interior que moldou sua vida“.

Rainer Maria Rilke, Cartas a um Jovem Poeta. Um dos livros mais marcantes e importantes da minha vida, indicado por uma das pessoas mais marcantes e importantes da minha vida. ♥
"[...] A petrificação dos sentimentos diante da força do outro, descobrir, sob o rosto calmo da mãe, uma torrente, um vulcão, ou pior, uma ausência, o gelo que já não se move e que nos faz berrar, gritar de medo."

Trecho da fala de Marguerite Duras, em uma entrevista concedida a Sinclair Dumontais.

"[...] Não havia uma brisa sequer, e a música havia se espalhado por todo o paquete negro, como uma imposição dos céus que não se sabia a que se referia, como uma ordem de Deus cujo teor era desconhecido. E a jovem tinha se levantado como se estivesse indo por sua vez se matar, por sua vez se lançar ao mar, e depois havia chorado porque tinha pensado naquele homem de Cholen e de repente não tinha certeza se não o havia amado com um amor do qual não se apercebera porque ele tinha se perdido na história como a água na areia e agora ela só o reencontrava nesse instante em que a música se lançava ao mar."

Marguerite Duras.

domingo, 3 de fevereiro de 2013