sábado, 27 de outubro de 2012

Distância (s.f): 

1. Intervalo entre dois pontos, dois lugares, dois objetos. 
2. Grande diferença. 
3. Afastamento. 
4. Posição de pouco ou menor envolvimento emocional ou afetivo. 
5. Período de tempo que medeia entre dois fatos, duas ocasiões ou épocas. 
6. Diferença entre categorias sociais.

Trama


"Um dia, eu já tinha bastante idade, no saguão de um lugar público, um homem se aproximou de mim. Apresentou-se e disse: "Eu a conheço desde sempre. Todo mundo diz que você era bonita quando jovem; venho lhe dizer que, por mim, eu a acho agora ainda mais bonita do que quando jovem; gostava menos do seu rosto de moça do que do rosto que você tem agora, devastado."


"A luz das velas insinua-se com muita suavidade pelo desenho dos lábios, pela curva das narinas, passa pelas pestanas, fio a fio, para, enfim, descansar nos olhos, pequenos mares convexos, líquidos e móveis como se fossem mesmo um aglomerado de lágrimas."

Sujeito Novo

"A arte cria uma espécie de mundo paralelo. E o legal é que o mundo paralelo vem desse mundo, do real, e isso é algo que as pessoas esquecem um pouco: que arte é o sonho da vida. A vida quis os artistas, por mais que os odeie. Arte é uma coisa que a gente bola, mas que tem que voltar de onde saiu. Arte é uma espécie de desejo coletivo que alguém faz, traindo, às vezes, até a sua origem. Arte em geral é uma vida paralela, que tem que voltar para a vida que a gerou, que a sonhou. A gente sonha para retornar para cá."


Nuno Ramos.
"A pele é de uma suavidade suntuosa. O corpo. O corpo é magro, sem força, sem músculos, podia ser de um doente, de um convalescente, ele é imberbe, sem virilidade a não ser do sexo, é muito frágil, parece estar à mercê de um insulto, sofrendo."
"A natureza humana, prossegui, depois de breve pausa, tem seus limites; pode suportar até certo ponto a alegria, a mágoa, a dor, mas passando deste ponto ela sucumbe. A questão não é, pois, saber se um homem é fraco ou forte, mas se pode suportar o peso dos seus sofrimentos, quer morais, quer físicos. E eu acho tão espantoso que se chame de covarde ou de desgraçado àquele que se priva da vida, como acharia impertinente tachar de covarde ao que sucumbe a uma febre maligna."



"Quero saltar à água para cair no céu."
“Minha fantasma”, em Ensaio Geral, trata-se de um curto relato do artista plástico Nuno Ramos sobre os seis meses de uma crise de depressão severa da esposa, suas idas aos médicos, os cuidados, os horários de remédios, o cansaço e a impotência. É um texto lindo sobre “um amor imenso e cansativo, que deve dizer bem alto: eu quero você mesmo assim. Ou algo ainda antes disso, já que ela é a mesma pessoa, apenas confusa, como quem circula pela casa sem encontrar a porta do próprio quarto”

 Toda vez que leio esse texto de Nuno, penso em como deve ter sido, para ela, ter alguém tão constante, tão certo, tão leal, alguém que desconfiou de um determinado médico “não pelos motivos habituais (pêlos atrás da orelha, voz melíflua, olhar excessivamente demorado, roçar de uma palma da mão na outra). Achei, apenas, que não gostava dela”. 

 Um médico que, segundo ele, parecia ser alguém que tocava violino, como um judeu de Chagall. “Devia ter uma coleção enorme de selos e uma mãe severa. Devia raspar um prato fundo de caldo de carne com a gema de um ovo batido todas as manhãs, pra ficar bem forte. Mas na verdade é baixo e atarracado e suas pernas não se desenvolveram tanto quanto o tórax, e o próprio tórax não se desenvolveu tanto quanto as feições elásticas do seu rosto — por isso não pode esconder certa fração de paraplegia, de paralisia infantil, certa dessemelhança entre a metade de baixo e a metade superior do tronco, como um Tratado das Tordesilhas cravado em sua cintura que torna apenas mais perverso seu sorriso forçosamente bondoso.” 

 Não sei por quê, mas acho essa passagem do médico particularmente tocante — há uma solidariedade muda que perpassa o texto inteiro, preenchendo inclusive as lacunas do vazio. Por vezes, o autor hesita diante de tanto sofrimento e é arrastado pela maré da tristeza dela, mas continua ao seu lado dia após dia, enquanto ela chora e chora, “chora por ser covarde, chora principalmente porque não pode parar de chorar. Não há ventos fortes nem tufões, mas uma monotonia de laguna excessivamente salgada onde os peixes não conseguem sobreviver”, conta. “A cura não é o raio de sol depois da tempestade, nem uma lufada de ar no quarto pestilento, mas haver o quarto, e sol como o conhecemos, e vento como desde que somos pequenos. É o mundo ser redondo e o oceano ser salgado. Isso é a cura, o tédio bem-vindo. Então é isso que ela ataca e protela, voltando a alto-mar enquanto lhe acenamos da praia monótona.” 

 A certa altura, não estamos mais falando de depressão, mas de amor."


Vanessa Barbara.
"Ele a olha. Com os olhos fechados ainda a olha. Respira seu rosto. Respira a criança, com os olhos fechados respira sua respiração, o ar quente que sai dela. Ele percebe cada vez menos claramente os limites desse corpo, que não é como os outros, ele não acaba, no quarto continua a crescer, as formas ainda não se detiveram, a todo momento estão se fazendo, ele não está ali apenas onde se vê, está em outro lugar também, se estende além da vista, para o jogo, para a morte, ele é maleável, parte-se inteiro no gozo como se fosse grande, adulto, sem malícia, com uma inteligência assustadora.
Eu olhava o que ele fazia comigo, como se servia de mim, e nunca tinha pensado que se podia fazer assim, ele ia além da minha esperança e em consonância com o destino do meu corpo."
"Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte
linguagem.

traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?"


Traduzir-se, Ferreira Gullar.