domingo, 27 de novembro de 2011


"Os olhos de Maya eram escuros, pelo menos era o que eu achava. Em minha vida, nunca vira nada semelhante. Quem quer que os olhasse mergulhava como em um rio em que tudo remete ao sonho e à aventura.
 Não esqueci aqueles olhos; jamais os esquecerei. Insisto nisso, pois, mesmo que me enganasse, parece-me importante para a história: eram risonhos, de um azul-negro singular, irregular, ao mesmo tempo perturbador e calmante. Azul-escuro, como uma noite de primavera no oceano, ou o azul acima do deserto. Por um momento, pareciam queimantes a ponto de causarem mal; depois, sem se alterarem, sem qualquer transição, sob as finas pálpebras, abriam-se como uma oferenda. E tinha-se vontade de escrutá-los ainda e ainda, acariciá-los com o olhar, sobrecarregá-los com algum sentido secreto, abrasá-los. O que os poetas e romancistas dizem a respeito dos olhos e de seu poder é, ao mesmo tempo, verdade e mentira. Espelhos da alma? Janela para o inconsciente? Sim, sem dúvida. Mas os de Maya eram mais, muito mais: reviravam-nos o estômago e retorciam as vísceras. Dissesse-me uma palavra enquanto me olhava, e eu estava pronto a levá-la até os confins da Terra. Apanhasse-me a mão, e eu deixaria a morte me tragar para a felicidade última com a qual não se transige.
 Por sua causa, o azul permaneceu minha cor preferida.
- O senhor me olha e eu o olho - ela disse, com seu pequeno sorriso no canto dos lábios. - Isso basta para imaginar o possível e até mesmo vivê-lo, não acha?"
"- Você olha para mim e eu tenho vontade de sorrir - repetiu em seu iídiche melodioso.
E eu de chorar."
"- Conte-me uma história - pediu Maya, com seus olhos azuis se tornando mais azuis do que o céu.
 - Uma história? - espantei-me um pouco. - Aqui? Agora?
 - Por que não? - replicou com um ar sério. - Haveria um momento especial para as histórias?
Eu podia responder que sim, há um momento para as histórias que se revelam e um outro para as que ficam abafadas na sombra; um tempo para as lágrimas e um outro para as cantorias, embora as lágrimas possam se deslocar para as cantorias.
 - Uma lembrança serviria?
 - No lugar da história?
 - Por que não?
 - Prefiro as histórias. As lembranças muitas vezes são tristes.
 - E as histórias, não?"



"Quando dois destinos acenam um para o outro, doutora, os deuses sempre intervêm. Eles aplaudem ou se zangam."
"Então, estar louco, o que é? Começar uma história, ou uma frase, e não terminar? Inventar uma existência que não se viveu, ou amar uma pessoa que se amou em outra vida? Seria isso agarrar-se a desejos insatisfeitos? Ter a cabeça em chamas e o coração gelado de vapor? Viver nos confins do tempo, em um país em que tudo está organizado, como outros vão viver e dançar no fim do mundo?"
"Minha vida, então, se tornaria uma lágrima?
E daí? Que ela faça o oceano transbordar."


"Mas, depois? Eis a tragédia do homem: há sempre um depois."
"- Eu tenho medo, e quando não sinto medo, tenho medo de não ter medo."
"Acabou que tudo confundiu você. E, assim, você esqueceu o essencial: para o homem que procura aliviar a sede na fonte, a inteligência e a paixão não são imposturas? Para que o homem se cumpra no êxtase ou na queda, ele precisa se agarrar ao presente. Apesar de fugaz, o instante conserva a sua eternidade própria, assim como o amor e até mesmo o desejo concebem seu próprio absoluto. Se você aspira metamorfosear o ser e o tempo, e as relações que os unem, acabará tornando seu um pensamento platônico que, afinal, afasta o homem do seu destino, deixando-o no terreno vago, brumoso e entulhado, primeiro do descrédito, depois da demência. Nesse universo ambíguo, cheio de maquinações e fanfarronadas, a força reside no ato de forjar a própria lucidez, aprisionar a própria verdade. Quem ama, cria ou recria, nem que seja no tempo de duração de um piscar de olhos, já conquistou uma vitória sobre a absurda fatalidade."




I want to know how many scars you have 
And memorize the shape of your tongue
I want to climb the curve of your lower back
And count your vertebrae
                   your ribs 
                   your fingers
                   your goose bumps
I want to chart the topography of your anatomy
And be fluent in your body language
I want you, entire.
http://www.youtube.com/watch?v=Z6WtvPX87s8
"- Uma lembrança verdadeira ou sonhada? - perguntou, de forma totalmente séria. - Um verdadeiro sonho pode facilmente virar lembrança - disse. - Um caco de lembrança, um fragmento de sonho bastariam? - Vou me contentar até com um fragmento de fragmento."

terça-feira, 8 de novembro de 2011

" - Aparentemente, Doriel, o silêncio lhe agrada. Isso acontece. Há pessoas assim. Desistiram da palavra. Sem esperanças na linguagem, escolheram o mutismo. Como finalidade ou como meio? Não é a mesma coisa. Como meio, o silêncio pode durar indefinidamente. Nesse caso, ele se explica e se traduz pela recusa da linguagem, que é uma outra forma sua. Mas como finalidade, ele implica a palavra, se ele quiser se aprofundar e se justificar."

pequenezas



"E a senhora? Conhece Nietzsche? Não o filósofo, nem o poeta, mas o psicólogo. Em algum lugar, ele disse que o principal inimigo do homem é ele próprio: a senhora também pensa assim? Teme que esse inimigo vença as suas resistências e triunfe sobre suas esperanças? Nunca teve medo, sim, medo, de se ver desarmada diante de adversários invisíveis, em um universo hostil, onde qualquer possibilidade de vitória está previamente descartada? Medo de não compreender mais, nem aceitar o que acontece, tanto de bom quanto de ruim? Alguma vez já se sentiu bruscamente desligada de tudo a seu redor, separada dos seus semelhantes, lançada no abismo pelas pessoas que a amavam ou que a senhora amava? Em outras palavras, doutora: alguma vez já teve medo de perder as suas referências, perder o juízo?"

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O monstrinho sempre volta.

escif

Entrevistador: Antes de falar sobre Midnight in Paris, tenho duas questões que se referem especificamente ao Brasil. Uma delas diz respeito à sua descoberta de Machado de Assis. Como isso aconteceu?
Woody Allen: Devo a uma fã brasileira que me mandou um e-mail falando de Machado, de Memórias Póstumas De Brás Cubas. Ela me recomendava que lesse o livro. Tinha certeza de que não iria me decepcionar. E não me decepcionei! O livro é sutil, divertido, inteligente, mas acima de tudo o que me encantou foram a sua ironia e a sua modernidade. Machado refletia sobre o próprio trabalho de uma forma contemporânea. Nesse sentido, Brás Cubas é completamente moderno. Poderia ter sido publicado na semana passada."


:)